O
Laboratório de Psicanálise da UECE (LAPSU) promove um ciclo de debates com os
encontros às segundas-feiras no horário de 13:30. O evento tem o intuito de
homenagear os 100 anos de uma das obras mais importantes de Sigmund Freud:
Totem e Tabu, aproveitando para contextualizar com a nossa realidade,
refletindo o próprio cenário em que a Universidade Estadual do Ceará (UECE) se
encontra atualmente a partir desse viés, mostrando o que a psicanálise tem pra
acrescentar como discussão no movimento grevista.
No dia 18/11, tivemos a apresentação do Livro
Totem e Tabu e, para quem perdeu a discussão ou mesmo para quem estava e tiver
interesse em estar lendo o texto discutido, disponibilizamos abaixo:
CONSIDERAÇÕES SOBRE TOTEM E TABU
Thais Barreto Coelho de Melo
Enquanto a
etnografia estudava especialmente a psicologia dos povos e da natureza, a psicanálise
se voltou principalmente para a psicologia dos neuróticos. Entre esses dois
estudos aparentemente distintos, existem convergências que se fazem dignas de
uma análise, apesar de elas, não necessariamente, apontarem para uma origem ou
essência comum.
O livro
Totem e Tabu, escrito por Freud e composto por quatro ensaios originalmente separados,
aborda, na perspectiva psicanalítica, alguns temas da psicologia dos povos que ainda
não vieram a ser solucionados e que, na opinião do autor, não haviam recebido
ainda a consideração merecida.
Freud coleta
diversas informações contidas em obras de grandes autores (como Spencer,
Frazer, Tylor, Wundt, Darwin, Smith, etc.) e as utiliza como ponto de partida
para suposições sobre a gênese de alguns mecanismos desenvolvidos em tribos de
selvagens que demonstram ter conservado aspectos primitivos.
O primeiro
aspecto a ser abordado é o Horror ao Incesto, que possui uma relação íntima com
o corolário da exogamia e com a adoração totêmica presente nessas tribos. O totem
pode ser um animal, uma planta, um fenômeno natural ou um objeto inanimado que possui
uma relação muito especial com o clã. Ele é o seu ancestral comum e, por isso,
o clã tem o dever de respeitar e proteger a espécie da qual procede, abrindo
mão de matar e alimentar-se desse animal e recebendo em troca proteção e ajuda.
As proibições podem se estender a não tocar, não olhar e não mencionar o nome
do totem. Caso algum membro do clã não cumpra com os seus deveres totêmicos,
será automaticamente punido com doença grave e, provavelmente, com uma
consequente morte. O totemismo adquire o papel de base religiosa e social
desses povos e o vínculo com o totem se mostra mutuamente benéfico.
No clã, já
que todos possuem um laço de procedência em comum, que é o totem que lhes
nomeia, todos os seus membros são considerados parentes, ou seja, todos fazem
parte da mesma família. Os vínculos não são entre indivíduos, e sim entre todo
o grupo. Os laços do totem são bem mais fortes do que os laços familiares que
conhecemos. Esse fato impede a união sexual entre os membros de um mesmo clã, o
que caracteriza a exogamia presente em qualquer divisão da tribo que tenha
objetivo de regulamentar a escolha matrimonial (fatrias, subfatrias, clãs,
etc).
O casamento
entre membros de um mesmo grupo totêmico se torna, portanto, um tabu. Os tabus
surgem como impedimentos, interdições, proibições. São precauções de cunho sagrado
que têm como intuito afastar os selvagens das tentações. Quanto ao incesto,
eles se mostram ainda mais sensíveis do que nós “civilizados”. Isso pode ser
consequência de sua maior proximidade frente a tentação, fazendo com que eles
se protejam muito mais rigorosamente desse ato repugnante e impuro. Obedecer ao
tabu é estar sujeito a uma limitação, uma restrição.
A
necessidade de fuga das tentações que caracteriza o tabu, algumas vezes, chega a
casos extremos como, por exemplo, não mencionar o nome da irmã, não olhar nos
olhos dela, não comer se ela estiver presente, etc. Interdições desse tipo também
podem ser encontradas em relação a pai e filha, mãe e filho e genro e sogra,
por exemplo. Em alguns povos, tal horror é tão forte que eles castigam até
animais domésticos incestuosos.
Mas por que
será que os tabus - como, por exemplo, o tabu do incesto - são marcados por
tamanho temor? A origem da palavra tabu é polinésia e não há uma tradução
específica para ela. O seu significado se divide em duas direções opostas que
vão de santo e sagrado à inquietante, perigoso, impuro e demoníaco. Tabu é tudo
aquilo em que é depositada uma fonte misteriosa de poder (mana), seja um lugar,
uma pessoa ou um objeto. O contato com essa energia poderosa que é inerente a
condições excepcionais ou especiais pode causar destruição caso seja grande a
diferença entre suas cargas.
O tabu,
portanto, é algo que não pode ser tocado, seja por sua elevação divina ou por seu
caráter perigoso. Essa concordância entre os dois aspectos opostos do tabu leva
à suposição de que, possivelmente, os dois extremos fossem inicialmente
indiferenciados e que se ramificaram no decorrer do tempo. Essa diferenciação
teria dado lugar ao desenvolvimento de opostos. O demoníaco, inicialmente em
evidência, dá lugar, aos poucos, à sua ramificação, saindo do horror à
veneração. A crença em deuses, então, seria desenvolvida, deixando a sua oposição
como algo inferior e acompanhado de desprezo. Assim também ocorreu na sucessão dos
estágios mitológicos, onde o estágio anterior, depois de superado, não
desaparece, e sim passa a subsistir ao lado do superior de forma degradada.
Mas de onde
surgem tais demônios? Freud considera a origem deles nos sentimentos hostis
pertencentes a ambivalência que os sobreviventes abrigam em relação aos amados
que morrem. A dor pela perda é consciente, ao contrário da satisfação que
remete ao desejo de assassinar o amado, que é inconsciente. Dessa forma, o
selvagem joga a percepção interna para o mundo externo, deslocando a sua
hostilidade para os espíritos através da projeção, e assim acaba transformando
seu egoísmo em altruísmo, de forma que investe nos impulsos sociais que
supercompensam seu instinto mau - o desejo original de assassinar. Portanto, põem
em prática punições nos casos de transgressões, assim como cerimônias e lutos
nos casos de falecimento, que têm objetivo de prantear os mortos, apaziguando
suas relações com eles e amenizando o sentimento de culpa que sentem. O
espírito, que é amado e odiado ao mesmo tempo, é temido e adorado, é sagrado e
impuro. O espírito, assim como o tabu, é ambivalente. E, dessa forma, se
encaixa com o conceito inicial de demônio, abrigando oposições que se dividiram
e tornam, posteriormente, coisas distintas.
Voltando ao
que se refere ao toque, percebemos algumas coincidências entre a proibição nos
tabus e nas neuroses obsessivas. Nos dois casos, a proibição é claramente consciente,
enquanto o desejo - de tocar, por exemplo - é inconsciente, ou seja, a ambivalência
se faz presente em ambos. O tabu existiu e permaneceu por conta do desejo de fazer
o proibido. Apesar disso, o temor se revela, na maioria das vezes, mais forte
que o desejo, impedindo que o tabu seja transgredido.
Se as duas
principais leis do totemismo são não liquidar o animal totêmico e evitar relações
sexuais com os indivíduos do mesmo totem, será que seriam esses os mais fortes
e antigos apetites humanos? Eles coincidem, curiosamente, com os dois crimes de
Édipo, que matou o pai e teve relações sexuais com a mãe, assim como coincidem
também como o núcleo nodal dos desejos infantis inconscientes.
Já que esses
dois princípios fundamentais do totemismo mostram tamanha compatibilidade com
as teorias psicanalistas sobre o complexo de Édipo, é de extrema importância
adentrar nos tabus dos selvagens e perceber que eles não então tão longe assim das
proibições morais e tradicionais obedecidas ainda hoje. Os caminhos trilhados
por Freud nos leva a considerar o totemismo como uma fase regular de todas as
culturas, o que aumenta a necessidade de aprofundar a compreensão sobre a
origem e o desenvolvimento desse sistema que engloba os enigmas que também nos
concerne.
Para
elucidar a gênese do horror ao incesto, Freud elabora uma hipótese histórica, porém
quase mitológica. Sua explicação é inspirada na teoria darwinista do estado
social primevo do homem, onde eles viveram originalmente em hordas - assim como
os macacos superiores - e o macho mais velho impedia que os outros tivessem
relações com todas fêmeas
do grupo.
Nessas pequenas comunidades, um único macho adulto era considerado e os jovens que
cresciam disputavam pelo domínio do grupo. Então, o vencedor se estabelecia
como líder, matando ou expulsando os derrotados. A hipótese de Freud é que,
certo dia, os irmãos expulsos teriam se juntado e abatido o pai, acabando com a
horda primeva. Após matá-lo, devoraram-no, o que simboliza a identificação com
ele e a apropriação de sua invejada força - e nisso, talvez, realizaram a primeira
festa: a refeição totêmica. Ao eliminar seu antecessor, satisfazem o ódio que cultivavam
por ele ser o obstáculo a suas necessidades de poder e a suas reivindicações sexuais
com as mulheres da horda. Porém, amavam-no e admiravam-no, e, portanto, não escaparam
do arrependimento. Após a morte, o pai se torna ainda mais forte do que havia
sido vivo. Por conta da consciência de culpa que surge diante do ato, os irmãos
proíbem a si mesmos aquilo que o pai anteriormente exigia apenas com a sua
existência. Então, eles criam as leis que interditam o assassínio do totem, que
representa o seu antecessor, e renunciam às mulheres de seu grupo,
fundamentando os dois principais tabus do totemismo.
Daí, o
sistema totêmico reconcilia o pai e os filhos e concede a eles suas fantasias
infantis de proteção e cuidado, assim como ajuda a fazer esquecer os crimes que
tanto os inquietavam. Os irmãos, apesar de terem se unido para derrubar a
liderança do pai, eram rivais no tocante às mulheres. O segundo fundamento do
totemismo alude ao fato de que a necessidade sexual, em vez de unir os homens,
acaba por dividi-los. Diante disso e diante do medo de ser assassinado pelos
próprios irmãos, já que nenhum era tão forte quanto o pai para ocupar o seu lugar
vazio de líder supremo, eles percebem que o ato executado trouxera alguns
problemas para a convivência do grupo. O crime vem a dar início às organizações
sociais, às restrições morais e à religião. Portanto, o “Não matarás” surgiria
como fundamento tanto religioso quanto social, já que se dirige,
respectivamente, ao totem e aos irmãos. Esses, ao perceberem que a plenitude do
poder do pai é inalcançável, aos poucos, abrandaram a hostilidade quanto a ele,
até que se dispuseram a se sujeitar a sua lei. As refeições totêmicas, festas
de recordação onde ocorrem os sacrifícios, são um momento em que as restrições
impostas pelo totem são deixadas de lado e o crime é repetido no sacrifício do
animal totêmico. Essa é uma forma de renovar a apropriação dos atributos do pai
e relembrar a satisfação do triunfo sobre ele. A participação de todos os
membros do grupo na cerimônia torna possível o excesso vivenciado na festa.
No mito
cristão, o pecado original do homem é o pecado contra o Deus-Pai e Cristo salva
os homens do peso desse pecado sacrificando sua própria vida. Ora, segundo a
lei de talião, um assassinato só pode ser expiado pelo sacrifício de outrem,
dando a entender que o sacrifício da própria vida, como fez o filho de Deus,
aponte para um homicídio. Depois disso, a religião do filho substitui a
religião do pai e a antiga refeição totêmica é reavivada, sendo ingerido, na
forma de comunhão, o corpo e o sangue desse filho que se sacrificou. O herói, que
carrega a culpa trágica, é transformado em salvador de seus irmãos.
O complexo
de Édipo, que é consonante com a possível origem do totemismo elaborada por
Freud, forma o núcleo da neurose. A base da consciência de culpa neurótica se acha
apenas em realidades psíquicas, sem precisar ser fatual. Como fenômeno de sua organização
narcísica, a existência fantasiosa do desejo de assassinar o pai poderia bastar
para a reação de criar o totemismo a partir do arrependimento gerado pela
ambivalência. Essa hipótese acabaria com a necessidade de supor o crime que
tanto nos ofendem os sentimentos. Apesar de tentador, esse argumento não se faz
decisivo. O primitivo, diferentemente do neurótico, converte rapidamente o
pensamento em ato, pois nele o ato é como um substituto para o que se pensa,
assim como acontece em crianças pequenas. Nós, neuróticos, temos que lidar com
a culpa de nossa realidade psíquica, não importando o quanto reprimida e
absurda nos pareça a hipótese de desejarmos a morte de quem tanto amamos. A
herança de anos de gerações que se sucederam deixa espaço para os substitutivos
deformados encontrados em nossa cultura atual. Será que somos capazes, apesar dos
labirintos construídos pelos nossos inconscientes, de identificar que
substitutivos são esses?